Wednesday, October 11, 2006

Sentido na Pele

Tuesday, October 10, 2006

Capítulo II (Parte 2)

A primeira visita da família.

Acordei passadas poucas horas já com uns raios de sol a entrarem pelo
xadrez das grades e de repente ouvi aquela sirene estridente, que marcou todos os mais de 1500 dias que ali passei e que marcava a alvorada.
Não sabia se me havia de levantar ou ali ficar prostrada pois todas dormiam … era sábado. O som estrondoso das Guardas a abrirem os ferrolhos das portas das celas fêz-se ouvir com eco pelo Pavilhão inteiro juntamente com o chinelar de pés a correr não sabia eu para onde. As vozes, ouvia-as ao longe – ó colega, quem é a última? …. Eu sou a seguir …. Quem é a última?... A seguir sou eu …
A companheira do pijama, P … reparando que eu estava acordada, disse baixinho: - Nita, vou ao refeitório buscar o pequeno- almoço e vou marcar a vez para o telefone, queres vir? – respondi – Não, obrigada - ela insistiu – mas não queres falar para tua casa? – respondi – quero mas não tenho cartão – respondeu ela: - Eu empresto-te o meu, tem pouco mas dá para as duas. Arranja-te enquanto eu vou buscar o pequeno-almoço que eu marco a nossa vez para o telefone. Daqui a pouco começam as visitas … vais ter visita? – respondi: - não sei … e ela terminou dizendo – Despacha-te porque se não ficarmos no telefone à espera da vez vai haver merda.
Levantei-me. Parecia que tinha levado uma tareia tais eram as dores que tinha no corpo. A pressão, os nervos, o colchão de espuma que me colocou a dormir na tábua, a cabeça vazia, os olhos a arderem com as lágrimas a teimarem em correr sem fim, sem rumo … olhei-me no espelho e vi uma pessoa que não era eu … era a minha assombração.

A P … regressou com dois termos na mão, um saco plástico com pão e pousando tudo em cima da mesa, fazia-me gestos que traduzidos queriam dizer: come e despacha-te.
Bebi uma chávena de café e fomos para o telefone.
O telefone … sempre a mesma confusão. Note-se que é raro o dia em que não há cenas de pancadaria por causa do telefone.
Liguei para a minha mãe, vinham a caminho de Tires … já não via a minha mãe e o meu filho há 3 dias.
Voltámos para o quarto. As outras senhoras já estavam acordadas e começámos a arrumar e a limpar o interior daquele cubículo.
Sentia-me mal, pois estavam todas com olhos em cima de mim, …tiravam-me a vassoura da mão e diziam, ora uma ora outra – deixa lá que eu faço isso … anda, sai daí, eu lavo … não é assim que se faz …´
Ou seja, para elas eu não sabia fazer nada. Elas eram as mais limpas.
No princípio isto tudo incomodava-me mas depois tive que aprender a viver.
Logo, quando diziam – sai, não é assim, eu faço… - eu obedecia e deixáva-as na limpeza.

Tenho que vos passar esta imagem de limpeza geral, ao sábado, dentro de um pavilhão prisional.
Hoje penso que essa imagem tem tudo a ver com a cultura dos bairros.
Eu aprendi a limpar uma casa com a minha avó materna e com a minha mãe de uma forma que considero normal. Nunca na minha vida vi colocar as mobílias e os haveres fora de portas para fazer limpeza, mas está certo, também aprendi esta modalidade na prisão..
Imaginem isto num prédio …

Ali, o estardalhaço da limpeza era impressionante: tiravam tudo para fora da porta, para o corredor, sacos com roupas, cadeiras, mesas, chinelos, colchões … por vezes até os beliches. Depois atiravam-se baldes com água para dentro da cela e esfregava-se com a vassoura. Depois, de joelhos, o chão todo passado a pano.
É certo que este processo arcaico de limpeza, é higiénico num local destes mas é reflexo do que elas fazem nos seus bairros. Também colocam tudo na rua mas aí, em vez de sacos riscados dos chineses como resguardo de roupas, é o frigorífico último modelo, o micro-ondas, os sofás de padrões fortes, os écrans de televisão planos e portas escancaradas a verem-se os candeeiros faustosos de vidrinhos pendurados nos tectos.
Tudo isto para mostrar às vizinhas o nível de vida que conseguiram, na maioria dos casos, fruto do tráfico de droga e roubos vários.
A contracenar com este luxo, cá dentro ou nos seus bairros, está associada a imagem destas mulheres loiras platinadas com raiz preta de 1 centímetro, cabelos esticados tipo vassoura agarrados num puxo com uma mola no alto da cabeça, carregadas de ouro, unhas pintadas, pijama e bibe aos quadradinhos,justo, curto, e chinelos de enfiar o dedo.

Subitamente, as guardas começam histericamente aos gritos no microfone a desfilarem um rosário de nomes para a visita, que tinha lugar no refeitório do Pavilhão. Vim ao corredor para ouvir melhor o que dizim pois a dicção era péssima e vi as mulheres todas produzidas como se fossem para uma festa, com sacos plástico na mão com a roupa que mandam para casa para lavar. A excitação era mais que muita.

Passado um pouco ouvi chamar o meu nome e lá desci para o refeitório.
Uma guarda abriu a porta quando bati, e indicou-me um lugar para me sentar, dizendo –tu sentas-te deste lado e as visitas à tua frente. –
Enquanto esperei, olhei em redor do refeitório apinhado de pessoas, na maioria de etnia cigana, um barulho imenso de conversas cruzadas sobre polícias, droga, advogados e julgamentos.
Quando vi os meus pais, o meu filho, o meu irmão entrarem ia morrendo. Se alguma vez eu pensei, inadvertidamente que fosse, fazê-los passar por este sofrimento e humilhação! Os olhos da minha mãe procuravam-me no meio de toda a gente.
Levantei o braço, acenei e só via a minha mãe chorar.
O meu filho aguentou-se , acho que ainda não se tinha apercebido bem do que estava a acontecer. Sentaram-se à minha frente e, sucintamente contei-lhes o que se tinha passado, mostrando a minha indignação por tudo.
A minha mãe contou-me que o advogado lhe tinha dito que – eram só 3 meses – até submeter recurso para reavaliação dos pressupostos da prisão preventiva. Comentei – bom, no Natal estarei em casa … mas até lá que posso eu fazer? Nada? Mas como é possível alguém pensar que eu sou traficante de droga?
Eu sempre trabalhei que nem uma moira … mas será que as pessoas não disseram a verdade aos polícias? Não lhes disseram que nada tenho a ver com isto? – A minha mãe dizia – Ó filha, não sei, também não percebo nada … o que vamos fazer? Temos que aguardar -.
Comecei a falar com o meu filho, para o sossegar, para lhe dar um pouco de tranquilidade e quando isto, as guardas anunciaram, - Terminou a visita, minhas senhoras vamos a sair, os visitantes ficam sentados! – então!? não ouviram!? terminou a visita! -.
O meu coração batia pois nem queria acreditar que já tinha passado quase uma hora, que não deu para nada pois as saudades eram muitas, havia muito para falar e não era possível. A minha mãe à pressa ainda me disse que deixou um saco com roupa lavada, pijama, artigos de higiene de primeira necessidade, cartão para telefonar e tabaco. Despedi-me deles a muito custo e tive que sair.
(continua ...)

Thursday, July 20, 2006

CAPÍTULO II (Parte 1)


SÃO SÓ TRÊS MESES …
Quando cheguei de novo a Tires, ao Pavilhão 1, de Preventivas, aprendi de imediato algo surpreendente:
a prisão preventiva, segundo a legislação, goza de uma presunção de inocência que na prática quer dizer “culpado até prova em contrário.”
Era tarde, perto das onze horas da noite.
As Guardas que me deram entrada fizeram-no de uma forma mecânica, como se fosse normal este processo. No olhar delas sentia o apontar do dedo, o pensamento “ mais uma que voltou …alguma fez para estar aqui”.
De novo levaram-me para o quarto, percorrendo aquela pavilhão cor de rosa, vazio, adormecido por um silêncio de morte.
Mal entrei, as minhas companheiras, quase todas ao mesmo tempo, disseram,
– Pensámos que tinhas ido para casa … já é tarde ….- dizia outra, - Então, não chores … senta-te aqui … fala connosco … e outra continuava, - desabafa, é melhor para ti … não estejas assim, não há-de ser nada …
A senhora de etnia cigana, com voz de quem sabe retorquiu: - o melhor é chamar a Guarda para lhe dar um comprimido para dormir … - respondeu a mais nova: - tenho aqui uns refundidos.
De novo, a senhora de etnia cigana, mulher entroncada, longa trança, postura determinada, com voz decidida disse: - Ouve lá, como é que te chamas? - respondi num tom quase inaudível, - Nita – ela continuou – Olha lá ó Nita, nós que andamos nesta vida, sim porque tu não és nenhuma tótó, até estudáste..., sabemos bem que um dia isto pode acontecer, não é? Claro que custa … mas é a vida … se somos mulheres pró negócio também temos que nos aguentar á bronca, não é? – antes de ela continuar, respondi - mas eu não fiz nada, eu não cometi crime nenhum … – continuou, desta feita com um tom sarcástico , - pois, pois … és inocente … tás aqui por tares a ver dar milho aos pombos não? São todas inocentes quando entram, até depois de condenadas continuam inocentes … ás vezes até parece que aqui dentro sou a única culpada … ao menos eu assumo aquilo que fiz !- voltei a interrompê-la conseguindo ainda colocar algum tom de determinação na minha voz que já demonstrava o meu cansaço e desilusão, - Eu já lhe disse que não cometi um crime !
Perante o tom utilizado ela calou-se e passado um pouco, com alguma condescendência disse: - Ouve lá, os judites não te deram comida pois não? Comeste alguma coisa? Tu desde ontem que não comes … só bebeste um café e fumáste … assim não vais longe mulher! Vai tomar um duche que quando saíres tens aqui leite quente com chocolate e pão com manteiga … anda lá, … aqui nesta cela a regra número 1 é que não queremos aqui porcalhonas um banho por dia é o mínimo!
Nem lhe respondi pois de repente pensei na minha casa confortável, no meu quarto, na minha casa de banho de banheira redonda, nos meus hábitos de higiene tão incutidos desde criança que nem nunca me passou pela cabeça que neste século houvesse alguém que no mínimo não tomasse um banho por dia…. mas , ao mesmo tempo, vizualizáva as barracas dos ciganos, sem água sem nada … perguntáva a mim própria - Quem era ela para me falar de higiene pessoal?-.
Mas lá fui para o cubículo do duche. Soube-me bem a água quente sobre os ombros que estavam rígidos como pedra. As minhas lágrimas confundiam-se com a jorrada de água do chuveiro.
A rapariga que me tinha emprestado o pijama na noite anterior deu-mo lá para dentro com a toalha.
Quando saí, numa mesinha colocada junto à janela de grades, por onde se vê o sol aos quadradinhos (ou a lua dependendo da hora do dia...), estavam todas sentadas com pão sobre a mesa, queijo, fiambre, manteiga e termos que continham leite e café.
A rapariga do pijama, disse, - anda, senta-te aqui e come. Queres queijo ou fiambre na sandes? – respondi ,– Não quero nada, obrigada- .
Ela insistiu – Eu também entrei na semana passada e sei como te sentes mas tens que comer. Tens filhos? – respondi a chorar , - …. sim …um filho. - ela continuou – então come, por ele, ou achas que além disto que te aconteceu o miúdo ainda vai ficar sem mãe? Não há nada mais importante que os nossos filhos, ouvistes? De resto mais ninguém se importa se comes ou deixas de comer ou se morres. Até podes apodrecer aqui que nem os chuis,nem juízes, nem as Guardas querem saber disso para nada. Senta-te lá e come qualquer coisa … depois vamos mas é dormir que já se faz tarde -.
Não quis desiludi-la, pois as lágrimas escorriam-lhe pela cara abaixo e então sentei-me. Bebi uma caneca de leite quente e um pouco de pão com manteiga a muito custo pois realmente não conseguia meter nada no estômago. Deram-me um comprimido para dormir e de seguida subi para o beliche e adormeci.
(Continua ...)



Monday, July 03, 2006

Capítulo 1 (parte 7)

- A P.J. já vem a caminho para te levar à TIC - . Nada comentei, voltei a percorrer o pavilhão com a dita companheira e, ao longo do percurso pensava – que guarda tão ignorante … nem sabe falar português … à TIC …? Então se Tribunal é masculino …- .
Com o decorrer do tempo também verifiquei que o português, a gramática, a cultura geral são para esquecer ali por aquelas bandas. Ah! E nem vale a pena chamá-las a atenção sobre os vários pontapés que dão na gramática pois se for uma guarda tomam-nos de ponta imediatamente. Aconteceu-me a mim, claro!
Na cela tomei um duche rápido, vesti a roupa suja e enquanto esperava, as companheiras iam falando comigo, ora uma ora outra, - vai correr tudo bem ... – , - se Deus quiser vais dormir a casa - ... , - tens advogado? Não fales nada sem advogado ... – , - se tiveres o azar de voltar, não te esqueças que estamos cá para te apoiar ...-.
O meu nome soou estridentemente ao microfone e uma das companheiras levou-me outra vez pelo pavilhão até ao gradão de saída. Saída ...hall de entrada, por onde entram as entradas ... sempre a entrarem e sair ? Sair é milagre.
A guarda prisional abriu a porta, uma nesga suficiente para eu passar, e vi dois homens à minha espera (já os tinha visto). Cumprimentei, entrei no carro e seguimos. No caminho até Setúbal iam falando, ora um ora outro...- então , que raio de amigos arranjou ... – agora quando falar com o juiz o melhor é dizer a verdade senão a coisa está má ...,- vão lá estar os seus amiguinhos todos, não pode falar com eles ... e não deve, pode prejudicá-la (coitados, tão preocupados que estavam comigo ...)
Nunca tinha entrado numa sala de tribunal. Nunca me tinha confrontado com o sistema inquisitório o qual pensava que há muito tinha desaparecido.Engano meu.
Aliás hoje em dia vejo que toda a vida estive enganada em relação a muitas coisas mas também sei que não sou só eu. Vocês que ainda me estão a ler, o que agradeço, também estão enganados. O problema é que eu conheci a realidade negra e feia e suja da forma menos agradável.
Depois de estar horas à espera entro numa sala com uma juíza e um delegado do MP, os dois sentados em plano superior, com um semblante de prepotência estampado nas suas fronhas e a Meretísssima, mal olhando para mim, e depois de me ter identificado, diz:
- Então o que é que tem a dizer?
Fiquei atónita a olhar para aquele semblante pois eu é que estava á espera de ouvir as razões concretas que ali me tinham levado qual criminosa da pior espécie.
- Então não ouviu? Tem a dizer alguma coisa? Respondi – Eu não sei o que aqui estou a fazer … Tinha um amigo a dormir lá em casa com dois amigos seus … Já expliquei à polícia que não tenho nenhuma ligação com as suas supostas actividades … Desculpe Srª Drª eu nem sei o que diga … não é melhor perguntar-me o que deseja saber? … é que eu não sei …. Ele é um amigo meu … não conheço as outras pessoas …. Ontem tive que dormir na prisão … porquê, porquê? – continuávam a olhar para mim, o MP bocejava e a Meretíssima, qual Deusa no Olimpo afirma peremptoriamente – eu não tenho que lhe fazer pergunta nenhuma. Pode sair! – e eu saí.
Depois de mais umas longas horas de espera, os polícias levam-me com os outros homens à secretaria, de passagem vi o meu pai, e decretam a minha prisão preventiva. À saída do Tribunal, um dos senhores que havia dormido na minha casa, que eu não conhecia e que mais tarde em julgamento assume o crime de tráfico de droga por todos os outros (tanto quanto me apercebi …), algemado, completamente descontrolado e indignado com os polícias gritava – Dejem la señorita … que se vá para su casa … ela nada tiene con todo esto … solamente allí dormimos porque estabamos com un amigo suyo … non la conocemos de nadie … que non se hace esto …por favor la señorita non … non tiene nada que ver com nuestros negócios .. Ese hombre que hable la verdad, el que conoce la señora … habla coño - . Os polícias tentaram com alguma brutalidade metê-lo no carro. O meu pai e eu estávamos a olhar para tudo como se de um filme se tratásse em que nós não éramos protagonistas. A minha cabeça estava vazia. O meu pai deu-me mil escudos para eu poder sobreviver na prisão até à primeira visita. O tal meu amigo, que ainda não vos disse mas nunva teve a coragem de olhar para mim, de olhos baixos balbuciou – Nita, não tenho nada, nem pasta de dentes nem dinheiro, têm aí para me emprestar? – Olhei para ele ….. um miserável … com ar de quem desceu aos confins de um esgoto … acho que até estava mais pequeno … . Num impulso e com as palavras a baterem-me na cabeça “Amar o próximo como a ti mesmo …” peguei na nota que o meu pai acabava de me dar e dei-lha. Um dos polícias que tinha assistido a tudo arrancou-lhe a nota da mão e disse– Não tens vergonha na cara? O pai da senhora acabou de lhe dar este dinheiro para levar com ela…. Cobarde. Com amigos como tu ela não precisa de inimigos para nada. Já para dentro do carro.
E foi assim que eu comecei a ser infeliz.
Aos quarenta anos de idade conheci a maldade, a podridão da sociedade em que vivemos, conheci marginais, criminosos com crachat e sem crachat, conheci homens e mulheres que se consideram deuses, violam direitos liberdades e garantias de qualquer pessoa, sem o mínimo de remorso, e nunca são punidos ou presos porque são impunes pela Lei, conheci gente recalcada, conheci almas sujas, conheci crimes terríveis cometidos por gente louca verem com alegria a absolvição, conheci toxicodependentes serem condenados com mão pesada como vis criminosos, conheci homicidas, conheci ladrões e conheci gente boa … vitimas de todos nós, do nosso egoísmo, da nossa insensibilidade, da nossa pobreza de espírito.
  • Conheci os amigos.
  • Conheci os conhecidos
  • Conheci a família…
Ganhei novos amigos
Sequei o saco lacrimal
Ganhei um sorriso novo … mais duro talvez.
  • Aprendi quase tudo sobre crime e marginalidade.
  • Aprendi como se rouba … como se furta.
  • Aprendi o que é o tráfico … aprendi tudo sobre droga.
  • Senti na pele o que é a corrupção, na carne o peso da maldade.
Criminosos…???
Há muitos por aí, nem melhores nem piores,
há os com sorte e os sem sorte.
  • Conheci os parvos (sendo eu a maior)
  • Conheci ignorantes com cargos de chefia.
  • Conheci a prepotência … o abuso de poder.
  • Conheci o ódio, a raiva e a vingança.
Senti tudo isto cá dentro,
Senti o meu coração em ferida pelo sofrimento causado à minha família.
Senti a impotência para lutar contra o sistema judicial e político.
Conheci os frouxos.
  • Requentei comida em cima da televisão,
  • Matei centenas de baratas
  • Aliviei muitas vezes o meu sofrimento ao escutar as desgraças alheias.
Vi no sorriso de uma criança a força para encarar mais um dia de prisão e de injustiça
Vi no rosto do meu filho o desespero… a desilusão...,
Marcado para sempre na sua pele, o trauma do meu número de presa.
  • Vi o mergulho dos meus, no mar da desgraça.
  • Suguei a força da minha mãe para viver.
  • Tirei um curso de jardinagem.
  • Fui jardineira de Tires.
Ajudei ao parto da minha cadela “Estrela”(abandonada na cadeia)
Apoiei-me no meu Guarda Prisional …,
encostava a minha cabeça no seu ombro já cansado.
  • Agarrei-me a Deus com todas as forças.
  • As minhas forças eram para as companheiras de Tires,numa luta louca para que nunca mais lá voltassem … mas regressam.
  • Fui sacristã de Tires
  • Que grande capelão tinha Tires … hoje goza de uma reforma bem merecida.
Aprendi a não julgar.
Por detrás de cada pessoa está uma história de vida,
às vezes muito triste.
Prendem-se mães e deixam-se filhos menores na rua ao abandono!
  • Há quem roube para dar alimento aos filhos.
  • Há quem mate para proteger seus filhos de violadores.
  • E há quem roube e quem mate por muito menos e está ao fresco nas ruas de Portugal.
Lutei contra o miserabilismo do regime prisional,
Lutei braço a braço com elas por uma esperança de vida.
Tentei manter os meus princípios e educação … não sei se consegui.
Sinto-me uma delas, na dor e na luta, mas elas não me vêm como tal.
  • Os soberanos fizeram-me sentir como uma criminosa
  • Julgaram-me em praça pública, ofenderam a minha família…
  • Ofenderam-me a mim … rotularam-me de traficante de droga e não me conheciam de lado nenhum.
  • Hoje sou uma criminosa á luz da Lei e do Estado;
Cadastrada,
presa à liberdade condicional,
presa às recordações para o resto da minha vida.
  • Conheci a escória,
  • conheci os advogados,estudei as leis.
  • Apliquei-as, sempre que possível, em benefício das mulheres de Tires.
  • Aprendi a contornar as leis e a viver sem elas.
Porque Lei só há uma,
A da sobrevivência!
(continua ...)

Wednesday, June 21, 2006

Capítulo 1 (Parte 6)

Dirigi-me com a minha “colega” para o quarto, entrámos e ela perguntou-me com vivacidade, - Ah! És jornalista!? Mas és mesmo ou estás cá infiltrada?- respondi-lhe, - eu não sou jornalista, trabalho em televisão ... sou produtora de televisão - ela retorquiu, - prontos, é o que estou a dizer, trabalhas na televisão és jornalista!
Ainda hoje, na cabeça das minhas companheiras de infortúnio não deixei de ser jornalista ... para a maioria das guardas também não deixei de ser jornalista. Com o tempo, a necessidade de transpor a barreira do silêncio foi tal, que escrevi vários artigos, alguns foram publicados e encontram-se neste livro.
Que me perdoem os jornalistas, eu só me aproximei desta profissão dentro da prisão de Tires pois como diz o velho ditado “a ocasião faz o ladrão”.
Regressámos ao quarto e apareceu a guarda prisional que tinha feito o conto de manhã cedo. Perguntou se precisávamos de alguma coisa e de seguida fechou a porta do quarto comigo lá dentro e com outras duas companheiras.
Perguntei, - Porque nos fecham cá dentro?- responderam-me, - vamos agora dizer-te as regras: Fecham as celas até às 10 horas mas se quiseres ficar do lado de fora ficas e podes ir para o convívio ou para o recreio se o abrirem. Depois abrem as portas, fazemos a limpeza da cela até à hora do conto e depois chamam para as marmitas . Comemos lavamos a loiça e vêm fechar as portas outra vez até às 2 e meia. Quem não trabalha tem que ficar mesmo cá dentro. Depois abrem as portas e fecham logo a seguir até às 4 horas ... quem quiser fica do lado de fora.
Depois a um quarto para as seis fazem outra vez o conto. Começam a chamar para as marmitas e a um quarto para as oito fecham-nos até de manhã.
Tentei consumir tudo isto mas de facto era impossível. A cabeça cansada, atordoada, sem roupa, sem escova de dentes, sem cigarros e todas as regras que me estavam a debitar pareciam-me estranhas, a terminologia que utilizavam era-me totalmente desconhecida.
Não fiz mais perguntas e deixei correr o dia para ver o que tudo aquilo queria dizer na prática.
Pensei com os meus botões, -
Marmitas, que raio é isto?
Dentro da cela as raparigas deitaram-se, ligaram a televisão e aconselharam-me a deitar e descansar um pouco. Foi o que tentei fazer mas era impossível. Os pensamentos atropelavam-se.... eu não queria pensar mas um turbilhão de pensamentos desordenados saltavam em catadupa dentro da minha cabeça, - Meu Deus, porque me está a acontecer isto ? Ai! Meu querido filho, minha querida mãe, meu querido pai ... mas como é possível isto estar a acontecer, meu Deus? Ai Deus tira-me deste pesadelo ... Ai minha Nossa Senhora protege o meu filho e os meus pais ... livra-os de todo mal ... diz-me quem são os meus inimigos .... eu não tenho inimigos, nunca tive, sempre fui uma privilegiada e agora .....
Assim passei a manhã, a tarde e a noite, deitada na cama a pensar enquanto as lágrimas corriam.
Na manhã seguinte chamaram-me histericamente ao microfone. Nem percebi o meu nome. Foi uma das companheiras que me avisou, - estão a chamar por ti, para ires ao escritório. Percorri o pavilhão com uma das jovens e parámos na porta do hall de entrada. Uma guarda prisional abriu a porta envidraçada, aos quadradinhos, uma nesga apenas, e informou, - Tens que estar pronta dento de 15 minutos!
Pensei – mas donde é que as guardas me conhecem … quem são elas para me tratarem por tu!? –
Claro que a minha educação não me permite tratar por tu pessoas que não conheço ou pessoas mais velhas a quem se deve guardar o devido respeito. Depois compreendi que tudo o que me foi ensinado ao longo da minha vida, ali naquele depósito de mulheres, não existe. Existe sim um processo de reeducação nivelado por baixo ao qual, o esforço e as energias para o confrontar, tem um preço demasiado alto pois estou a falar do mantimento da minha sanidade mental.
(continua ...)




Friday, June 16, 2006

Capítulo 1 (Parte 5)

Céus!

Que horror!

Oh meu Deus o que é isto!?

Onde estou???

Enquanto estes pensamentos se atropelavam na minha cabeça, entrei novamente no quarto, incrédula, agoniada, sem fala.

A rapariga voltou para trás comigo, falava, falava, tocava-me no braço ... as que estavam dentro do quarto olhavam-me como se eu fosse uma ave rara.

Por fim comentei - eu nunca vi uma coisa assim ... tantas mulheres, crianças ... - responderam - já te explicamos, agora anda e despacha-te, senão não telefonas mesmo.

E lá fui eu, encolhida atrás delas e enquanto andava via as mulheres todas desalinhadas, ponta a cima ponta abaixo, fumo no ar, muito fumo, um barulho ensurdecedor, as crianças no piso de baixo com pedaços de pão na mão e tapetes a serem sacudidos do piso de cima, lixo no chão ... conforme eu ia passando ia ouvindo pedaços de conversas em linguagem vernácula e alguns comentários, - olha a jornalista que entrou ontem ..., mais à frente, - ... é a jornalista sim senhor, a guarda disse-me que era ela....

Chegámos a um hall, pelo qual tinha passado na madrugada anterior, apinhado de mulheres, a fumar, a beber café, a maioria de pijama vestido com uma bata por cima, a falarem aos gritos para se fazerem ouvir no meio da gritaria geral, no meio da histeria das guardas a fazerem chamadas ao microfone, rádios a tocar estridentemente ...

Enfim, ninguém se entendia, pensava eu, mas no fundo todas se entendem no meio desta engrenagem que começa a fazer parte do dia a dia de cada pessoa que ali vive, vegeta, sobrevive ou morre! (Gaby, companheira, onde estiveres sabes que estás sempre no meu coração)

A minha “colega” perguntou, aos gritos, - Quem é a última para o telefone ? És tu? E quem vai agora? És tu? - e dirigindo-se a esta última disse - ó colega, deixa esta rapariga telefonar num instante ... entrou esta noite e ainda não falou com a família!

Isto foi dito mais num tom de ordem que de pedido e talvez por tal foi concedido. Cheguei-me com a minha “colega” ao telefone, ela enfiou o cartão da PT, liguei o número do meu pai e as lágrimas caíam.

Só pensava - tenho que me controlar, tenho que dominar as emoções pois não as posso transmitir à minha família - .

O meu pai atendeu, com uma voz triste e cansada - Estou, sim ? – e eu disse – Papá, sou eu. Estou na prisão de Tires. - perguntou-me - Em Tires !!!??? Como foi isso? – respondi – não sei bem ainda.... pai, desculpa mas não sei. O meu filho?Onde está o meu filho?, - respondeu, - Não te preocupes está aqui. Disse eu - Pai, leva-o à escola pois o meu filho nunca andou de autocarro ... cuida dele e da mamã -.

A minha mãe entretanto veio ao telefone, a chorar – eu também com as lágrimas a cair mas tinha que me controlar, - Oh ... filha que desgraça .. mas o que aconteceu ?

Eu já não tinha mais tempo para estar ao telefone. Algumas mulheres já estavam exaltadas a falar alto. - Ó colega, vê lá se te despachas ... também quero telefonar. Respondia a outra, - tás a falar p’ra quê, ó chavala, nem sequer é a tua vez agora! Com este início de discussão, entre elas, esqueceram-se de mim por um pouco e eu consegui falar com a minha mãe, dei-lhe o horário das visitas (estava afixado junto ao telefone) e falei com o meu filho, - Filho, a mãe ama-te muito... não te preocupes meu anjo... há aqui um engano e tudo se vai esclarecer rapidamente, está bem? Amo-te – e ele, coitadinho só me dizia, - Sim mamã, eu também te adoro.

E tive que desligar pois não aguentava mais a pressão, a cabeça a latejar, as lágrimas e a gritaria das mulheres já não me deixavam pensar, falar, nem ouvir mais nada.

(continua ...)

Friday, June 09, 2006

Capítulo 1 (Parte 4)

Fiquei ali parada, imóvel, a olhar para o espaço:
cor de rosa, 3 beliches, 5 mulheres, algumas a dormir (ou a fingir que dormiam …para não ouvirem mais histórias, mais desgraças pois bastavam as suas …).
A rapariga que se tinha levantado estava também parada a olhar para mim e uma outra levantou a cabeça, com ar estremunhado e ficou também a olhar.
As lágrimas caíam-me silenciosamente pela cara abaixo.
Uma outra, virou-se no beliche, olhou para mim e balbuciou- estás a ressacar? – respondi, baixinho, - que é isso?.
Olharam-me as três, com ar sonolento e incrédulo, e uma perguntou, - estás cá por droga? – respondi – acho que sim, não sei bem ...
A segunda rapariga, que me olhava com ar estremunhado, levantou-se e com prontidão baixou-se para debaixo da cama, puxou um caixote de cartão e à medida que mexia no caixote dizia, - olha, tens aqui lençóis para a cama… estes são meus … a cadeia não tem nada para ninguém … cuecas, pijama, toalha de banho ... – e ia-me atirando gentilmente as coisas, e continuava - ... é meu mas está tudo lavadinho e na~tenho doenças... só não tenho almofada ... aí atrás de ti tens o duche, podes utilizar o gel de banho ... fica à vontade, colega.
Colega!? Que termo tão estranho! Não o ouvia há anos e anos … e também não tinha andado com ela na escola !
Quando olhou para trás, vendo que eu continuava imóvel com tudo na mão, levantou-se, dirigiu-se a mim e à medida que me tirava tudo da mão dizia, - anda lá, despacha-te, são seis horas da manhã ... leva a toalha e mete-te no duche ... vai-te fazer bem ... amanhã é outro dia - . Com a mão dirigiu-me para dentro do cubículo do duche.
Lá dentro fui-me despindo, sempre com as teimosas lágrimas a escorregarem pela cara abaixo e ouvi as duas raparigas a conversarem.
Uma dizia, - dá aí os lençóis que eu faço-lhe a cama ... daqui a pouco abrem as portas, e não dormimos nada.
Outra balbuciava, - Pá, falem baixo. Daqui a pouco vou trabalhar e quero dormir. Os embrulhos são sempre para esta cela ... - .
Quando me viram sair do duche, já com o pijama vestido, calaram-se e a primeira rapariga que eu tinha visto disse, - sobe, a tua cama é aquela lá em cima ... vê lá se cais.
Agradeci e subi com o maior cuidado. Ainda a vi subir com agilidade para a sua cama, agilidade esta que, compreendi depois, se ganha com muitos anos de prática.
Fecharam a luz e tudo voltou ao silêncio doentio, mortal, pesado. Ali fiquei acordada, com as lágrimas a correr pela cara abaixo, sem lenço para me assoar, entregue aos meus pensamentos confusos intercalados por orações, embalada pelo som do respirar pesado de cinco mulheres em sono profundo.
Comigo éramos seis mulheres num espaço de quatro metros por quatro. A janela tinha grades e nisto tudo só reparei quando o sol começou a nascer. Uma estridente sirene ouviu-se, com eco. As raparigas começaram a levantar-se e aí sim vi-lhes a cara a todas. Olhavam para cima , para mim, com ar desconfiado mas ao mesmo tempo descontraído.
Eram quase sete horas da manhã.
A rapariga que me tinha emprestado o pijama disse-me, - bom dia, dormiste bem colega?- respondi, - não consegui dormir ....-, ela continuou, - é normal, estás nervosa ... queres telefonar para casa ?
Quando abrirem as portas, às sete e um quarto, vou lá abaixo buscar o pequeno almoço e peço à guarda para te deixar telefonar, está bem? Aqui é com cartão .... A rapariga ágil, enquanto se arranjava disse, - eu empresto-te o meu cartão para ligares e levo-te ao telefone.
E assim começou o meu primeiro dia de mais de mil e quinhentos dias de prisão, (contados até à data da suposta libertação).
Eram perto das oito horas da manhã quando as duas raparigas chegaram ao quarto, acompanhadas de uma guarda prisional que me disse, - olha, vai lá telefonar à cabine. Elas levam-te depois do conto .
A guarda saiu. Reparei que não era a mesma que me tinha acolhido de madrugada. Perguntei ás raparigas, - o que é o conto ? – responderam-me a rir, - São as guardas que nos vêm contar a todas, para verem se nenhuma fugiu ... fazem isto quatro vezes ao dia ... Quando toca a sirene vens para a porta da cela senão levas participação ....
Perante o meu semblante, de boca aberta, sorriram novamente e disseram, - deixa lá, com o tempo habituas-te . Ainda lhes disse, - ... eu quero ir para casa, não sei o que estou aqui a fazer ...
A senhora mais velha, de etnia cigana ,que pouco ou nada tinha falado disse com convicção, - ... vais para casa sim senhor, se Deus quiser ... nenhuma de nós nasceu aqui ... assim como entrámos temos que sair um dia!
Disfarçaram a conversa .
Um saiu e voltou com três bicas em copo de plástico.
Soube-me bem este café acompanhado do cigarro que me restava.
A estrondosa e irritante sirene voltou a tocar e a guarda do novo turno apareceu à porta, muito compenetrada, a fazer contas de cabeça – como quem conta cabeças de gado.
Uma das raparigas, conforme se movia rapidamente dizia, - anda depressa, corre para sermos as primeiras a chegar ao telefone ... depois é muita confusão e só consegues ligar lá para o meio dia .... (eram oito e um quarto da manhã ...)
Fui atrás dela, abriu-se a porta da cela e saí para o corredor.
( continua ...)